MANOEL DE JESUS FORTES
Manoel de Jesus Fortes foi personagem singular no cenário são-joanense do século XVIII. Sua imagem foi focada numa primeira fase de forma romântica e legendária, provavelmente com algum fundo de verdade, e culminou com um fato expressivo que justifica plenamente sua inclusão entre as figuras de destaque daqueles tempos remotos.
Suas origens são nebulosas ou mesmo ignoradas. Conta a lenda ter sido moço de posses, bem apessoado, bem vestido, um casquilho, boêmio inveterado, avesso ao trabalho e preocupado apenas com os prazeres de uma vida dissipada á cata de amores fáceis e fugazes. Certamente um alvo predileto das críticas de uma comunidade em que predominava, pelo menos nas aparências, a exigência de comportamento compatível com os padrões morais da época... Um prato feito e farto para os cochichos maliciosos das beatas frequentadoras da Missa das Almas.
Relatavam os antigos que, numa de suas andanças noturnas, nas quase desertas ruas da vila, à luz bruxuleante de escassos candeeiros de azeite, deparou-se com uma figura singular de mulher: jovem, esbelta, fascinante, envolta em vestes transparentes e provocantes. Daí para um entendimento recíproco não houve delongas: mais uma aventura se consumou numa alcova luxuosa e perfumada, entre finos lençóis. Horas depois, Jesus Fortes, mal acordado, estendeu a mão à procura da parceira que deveria estar a seu lado: nada, o vazio. Estremunhado abriu os olhos e foi ofuscado pelos primeiros raios da alvorada. Sentiu calafrios e, apavorado, percebeu que estava deitado sobre o mármore gelado e orvalhado de um túmulo, rodeado de covas rasas pontilhadas de cruzes negras.
Aqui termina a lenda e começa a história. A vida de Manoel de Jesus Fortes se transmudou radicalmente. Punhos e peitilhos de renda, calções de veludo, meias de seda, sapatos afivelados em prata, bengala encastoada em ouro foram substituidos por burel de grosseira estamenha, modestas alpargatas de couro cru e um simples cajado de viandante. Tornou-se um eremita. Seu nome foi as poucos sendo esquecido, e passou a ser conhecido apenas por Irmão Moreira. Uma idéia fixa o dominava: quitar perante Deus e os homens e, talvez o principal, frente a sua própria consciência, os desvarios de sua vida pregressa. Sua meta: erigir um hospital para abrigo e atendimento aos pobres enfermos. Para isso passou a percorrer ruas e caminhos, esmolando donativos e recorrendo ao beneplácito das autoridades civis e eclesiásticas.
As primitivas instalações de seu hospital - a Casa da Caridade foram construídas e inauguradas em 1783: duas enfermarias, num total de trinta leitos, anexas a uma capela sob a invocação de São João de Deus. Em 1817 a Casa da Caridade passou à designação de Santa Casa da Misericórdia, nome que conserva até os dias presentes. Instituição que, embora nem tão santa nem tanto da misericórdia, varou mais de dois séculos prestando relevantes serviços à comunidade e é motivo de orgulho para São João del-Rei. Encontra-se, ainda hoje, no setor mais antigo da Santa Casa, entre outros quadros em que são lembrados os principais benfeitores da entidade, uma pintura a óleo, datada de 1860, executada pelo pintor são-joanense Venâncio José do Espírito Santo, com a legenda Manoel de Jesus Fortes. Passados tantos anos, não se trata de um retrato; a figura do eremita é uma concepção do pintor, baseada na tradição.
Em ano não preciso, Manoel de Jesus Fortes retirou-se da Vila de São João deI-Rei e foi fundar nas minas diamantiferas do Arraial do Tijuco (Diamantina) uma outra Casa da Caridade.
GUIMARÃES, Geraldo. São João del-Rei - Século XVIII - História sumária.
1996, págs. 114, 116.